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Foto do escritorJessica Olivieri

As voltas que a vida dá (na gente)



8:30, toca o despertador. Aperto Snooze. 8:45, Snooze. 9:00, Snooze. 9:15, Socorro! Tá bom, desisto. Me arrasto pro banho. Escolho uma roupinha formal, desconfortável, sem cor, sem graça. Como qualquer coisa correndo e, num gole apressado, bebo um café. Aproveito pra me maquiar no trânsito. Chego no escritório, sou recebida com sorrisos falsos de pessoas que eu não gosto. Eles também não gostam de mim. Sento na minha sala gelada, leio meus e-mails, leio algumas notícias. Entro pra reunião com um cliente corrupto. Dou risadas forçadas de piadas machistas. Saio pra almoçar num kilo ruim e fofocamos sobre as pessoas do escritório. Volto pro escritório. Escrevo uma petição com uma tese que eu não concordo. Mando pro meu chefe. Ele liga pedindo pra revisar uns trechos que ele mesmo poderia editar. Tomo um café que me deixa elétrica e ansiosa. Leio e respondo mais e-mails. Vejo o andamento dos meus casos e disparo mais alguns e-mails. Delego trabalhos que eu não quero fazer pra advogados mais novos. Espero meu chefe me chamar para falar da reunião de amanhã. Ele passa seis outros assuntos na frente. Enquanto isso eu enrolo e debito as horas que eu trabalhei. Falo com meu chefe por 10 minutos sobre trabalho e por 40 minutos ouço ele desabafar sobre a vida pessoal dele. Vou embora do escritório. Trânsito. Chego em casa quase às 22h. Como qualquer coisa, vendo qualquer coisa na TV. Deito, durmo, acordo e repito tudo.


Isso descreve praticamente todos os meus dias enquanto trabalhei como advogada. Fui parar na faculdade de Direito porque eu não passei em mais lugar nenhum e fui ficando. Ficando e detestando. Me formei e continuei trabalhando na área. Não via outra alternativa. Nos meus raros momentos livres, fiz alguns cursos de escrita criativa e de psicanalise. Fui percebendo que esses meus “hobbies” me alegravam e me motivavam mais que as 15 horas que eu passava trabalhando, mas me faltava coragem até para conseguir enxergar um dia-a-dia em que esses assuntos pudessem ocupar meu dia todo.


Depois de ter feito vários cursos avulsos de psicanálise, um belo dia me vi inscrita numa formação em psicanálise. No primeiro ano, seria possível coordenar a carga horário do curso com os horários do escritório. A partir do segundo ano já não seria possível, mas esse era um problema para a Jessica do futuro. Aos poucos fui mergulhando mais profundamente na psicanálise e minha presença no escritório tornou-se uma obrigação burocrática dos momentos em que eu não estava estudando ou nas aulas de psicanálise.


Adoraria poder contar aqui que um belo dia acordei cheia de coragem, entrei na sala do meu chefe e proclamei que meu futuro não era aquele, mas isso não aconteceu. Na verdade, eu estava tão desmotivada e infeliz no escritório, que um dia meu chefe me demitiu. Na época, fiquei horrorizada! Eu nunca havia sido demitida e, pelo contrário, sempre tinha ido bem em tudo que eu me propunha a fazer. De modo geral, vivia uma fantasia de que eu nunca tinha fracassado. Releio novamente o começo desse texto com a descrição da minha rotina e vejo que a minha definição de fracasso é bastante relativa.


Hoje, enxergo essa demissão como a melhor coisa que aconteceu na minha carreira. Por um tempo, continuei procurando trabalhos na área do Direito, pois insistir no erro parecia ser minha especialidade. O momento político no Brasil não ajudou e os meses passavam e eu continuava desempregada. Com o intuito de ganhar um dinheiro enquanto me reestabelecia, comecei a fazer traduções jurídicas. Depois de um mês, notei que estava ganhando mais dinheiro com isso do que ganhava no escritório. Estruturei minha empresa e, finalmente, tive a coragem de assumir que trabalharia com traduções enquanto eu estudava e me formava em psicanálise. E foi isso que eu fiz!


Se eu fosse coach, talvez conseguiria inventar uma grande história de superação e bravura para contar como mudei de carreira aos 30 anos, mas sou psicanalista (!) e consigo ver beleza na tortuosidade das decisões que somos capazes de tomar para nos aproximarmos do nosso desejo.


Tenho certeza que minha história é mais uma dentre tantas outras de pessoas que acabam acomodadas em empregos que não gostam e que quando se dão conta estão vivendo o sonho dos pais, dos amigos, de todo mundo menos o seu próprio. Na clínica, o que eu mais vejo são pacientes enganchados no desejo do outro e alienados dos seus próprios desejos.


Aliás, o trabalho da análise, a meu ver, é justamente esse: auxiliar o paciente a conhecer o seu desejo e se implicar na busca para realizá-lo. Se antes brincavam “Freud explica”, hoje falamos em “Freud implica”. A questão da responsabilidade do sujeito é central à psicanálise. E não é tarefa fácil! O analista deve direcionar o tratamento de modo a responsabilizar o sujeito frente às suas decisões, ações, falas e, inclusive, frente ao não dito e o indizível, de modo que a posição do paciente enquanto sujeito seja marcada pela sua implicação em si mesmo e, assim, na sua responsabilidade enquanto sujeito.


Demorei 30 anos para conseguir me alinhar com o meu desejo – ao menos no que concerne à minha vida profissional – e suspeito que demorarei pelo menos mais uns 30 para seguir implicada nesse caminho em todos os aspectos da minha vida. Trata-se de um trabalho para a vida toda.


Nessa primeira coluna, quis me apresentar: prazer, sou a Jessica! Como contei, sou psicanalista e atendo em consultório. Pretendo usar esse espaço para escrever sobre a psicanálise de uma forma acessível e verdadeira. E se algum dos meus textos te fizer refletir sobre a sua vida ou te motivar a buscar uma análise pessoal, me darei por satisfeita.



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