Caminhar é o princípio de tudo. É de onde partimos. O homem se desenvolveu física e culturalmente para caminhar, e é caminhando que tomamos parte nos eventos da vida, que construímos grande parte de nossa subjetividade. O ato de caminhar, que se torna tão banal à medida em que é automatizado, é um dos melhores exemplos para se pensar a relação corpo-mente dado que se ancora sobre o equilíbrio de dois elementos: intenção de deslocamento e sustentação física.
Ainda que fundamentalmente seja uma ação motora de deslocamento do corpo no espaço, caminhar tem inúmeros significados na nossa história como bípedes. O caminhar varia, por exemplo, entre a ação funcional para a saúde e a brincadeira lúdicoexploratória das crianças. Entre a ação terapêutica e a mística dos errantes e peregrinos. É o ato subversivo do flanêur das cidades que se recusa ao expediente de produtividade para passear. É ação democrática e libertária nas passeatas e manifestações públicas. É ação repressora quando no formato de marcha sobre essas mesmas manifestações. Caminha-se com intenção de chegar a algum ponto, mas também se caminha com intenção de não precisar chegar a ponto algum.
Sendo o caminhar uma das manifestações mais espontâneas do ser humano, ela permite, contraditoriamente, tanto uma formação de identidade e subjetividade por parte do indivíduo, quanto uma vazão ao sentimento de desapego e não-pertencimento à coisa alguma. Nesse sentido caminha-se também para “se perder”. O ser humano caminha ao encontro de si mesmo, permeado por todas as possibilidades dessa ação. E ir ao encontro de si mesmo: conhecer-se, familiarizar-se com seu corpo, mente e emoções, são condições não negociáveis para a saúde física e mental.
Há muito mais em caminhar do que simplesmente andar. Há um contato direto entre as pessoas e a comunidade do entorno, o ar fresco, o estar ao ar livre, os prazeres gratuitos da vida, experiências, informação e, principalmente, desaceleração. Uma boa cidade é, fundamentalmente, uma cidade com boas oportunidades para três atividades humanas básicas: ver, ouvir e falar. Para tal, pressupõe-se que as cidades devam ser pensadas em escala humana, uma vez que o corpo guarda a chave da cidade. E, ainda que a atividade física, a frequência cardíaca e todos os itens da vida fitnesss devam ser levados em conta, a lentidão da caminhada também merece ser uma possibilidade de escolha.
É sabido que a caminhada é uma das modalidades mais completas de atividade física dado seu caráter universalizante, mas sabe-se também que é uma ferramenta poderosa para combater efeitos da depressão, ansiedade e outros transtornos. Em sua próxima caminhada, experimente a diversidade que essa prática lhe permite. Um novo ritmo, um novo local, um novo horário. Caminhe por ruas que não conhece, explore seus sentidos. Sinta os cheiros, olhe as pessoas, escute os sons. Experimente passos rápidos com atenção à sua respiração e batimentos cardíacos, mas igualmente se permita explorar os passos lentos os passos muito lentos.
É na lentidão da caminhada que vemos o outro, que rompemos a bolha da percepção. É na abordagem vagarosa das paisagens (urbanas ou rurais, não importa) que descobrimos o segredo do estiramento do tempo e da ampliação do espaço. Nesse sentido, caminhar se torna uma prática contemplativa. Se vemos algo de um carro ou de um trem em movimento, o olho assimila rapidamente a informação das coisas que parecem se aproximar subitamente de nós. Caminhando, pelo contrário, é como se as coisas que o olho alcança insistissem mais em nosso corpo. Fazer com que as coisas insistam por mais tempo no corpo é capital para nossa percepção de ancoragem e enraizamento, alicerces da saúde física e mental. Caminhe mais.
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