Phobos e o Feminino - Um recorte sobre a cultura do medo
- Paloma Muniz
- 16 de abr. de 2021
- 5 min de leitura

O medo é uma das emoções inatas mais primitivas. É uma emoção que garante reações físicas e emocionais de sobrevivência em meio a qualquer ameaça. Os gregos utilizavam duas palavras para expressar suas apreensões: deos, que significa um temor refletido e controlado e phobos, o medo intenso acompanhado de fuga. Nesse sentido, o medo era concebido como uma punição dos deuses e considerado uma vivência interior.
Foto: Nathália Miranda
Durante a Idade Média o medo emerge como uma manifestação de vivência externa. Neste sentido, a coragem era exaltada como justificativa do valor e poder dos heróis. O medo, entretanto, estava associado à covardia, permanecendo escondido como sentimento vergonhoso, indigno de atenção, tornando-se uma emoção não autorizada ao homem expressar.
Desde a infância, as mulheres são condicionadas a vivenciar a experiência do medo, associado, muitas vezes a constrangimentos, inseguranças e sensações de incapacidade. É comum se ensinar as meninas que devem sentar direito, fechar as pernas, não andar sozinha a noite, ter cuidado com as más companhias. Como se estivessem que estar sempre alertas, pois o seu corpo pode ser a qualquer momento violado.
Nós mulheres sentimos um medo quase interrupto de sermos estupradas, das nossas filhas serem estupradas e isso nos torna pessoas em estado de hipervigilância sempre que estamos diante de um símbolo ameaçador - real ou imaginário - como uma rua escura, um Uber desacompanhada, a presença de um homem desconhecido, entre tantos outros símbolos. Isso é não só cansativo, como dirige nosso comportamento e nossas crenças sobre o que é ser mulher, nos limitando e reprimindo nosso verdadeiro eu.
O medo de estar sozinha, que frequentemente escuto no consultório - sobretudo o pavor da separação como sintoma - ainda são resquícios da cultura do medo. Esse “sintoma” pode estar relacionado com a ideia antiquada que, por muitas gerações, foi introduzida no psiquismo da mulher, fomentando que a realização feminina estaria associada a um casamento bem-sucedido, um par, geralmente projetado na figura masculina, como se o relacionamento estável tivesse o poder de blindar a mulher de ameaças externas. Sendo assim, a mulher com um “bom casamento” estaria protegida e resguardada.
Embora os tempos sejam outros, e o movimento feminista abra caminhos para o processo de individuação feminina, ainda é comum eu atender mulheres extraordinárias, interessantes, politizadas, bem-sucedidas profissionalmente e estruturadas financeiramente, com a queixa de não conseguirem sair de um relacionamento abusivo. Muitas delas com absoluta consciência das violências sofridas e do mal que fazem a si mesmas permanecendo na relação. E a frase de ordem é sempre a mesma: “- Eu tenho medo de ficar sozinha. “
Para Jung, o medo é uma defesa psíquica contra uma adaptação insuficiente. Como um mecanismo de defesa, ele tenta esquivar-se das invasões compulsivas da anima, o aspecto feminino da psique humana, que tem como principal função, promover a restauração do equilíbrio psíquico necessário para o desenvolvimento da personalidade. Não há outro caminho para mulheres que estão em um relacionamento abusivo a não ser despertar sua coragem interior - e isso só se realiza rompendo as barreiras do medo. São barreiras tão profundas, tão antigas, que só mergulhando no inconsciente podemos alcançá-las.
Acima de tudo, quando conseguimos acessar o nosso caos, nossa voz interior, nosso potencial criativo e intuição, libertamos a nossa criatividade transformadora e conseguimos acessar a nossa coragem, tão necessária para confrontar nossos medos mais profundos. Todavia, este processo exige, sobretudo, o enfrentamento dos impulsos infantis de medo, a elaboração do caos, de modo que se crie uma estrutura psíquica capaz de transformar, transmutar e transcender. Não há mudança comportamental, quando a energia do medo é maior que a força de enfrentamento, assim, resta a estagnação.
A literatura, como ferramenta de expressão do inconsciente, também exterioriza, ressignifica e comunica à consciência os anseios das mulheres diante do medo, como uma manifestação viva da alma feminina. As artes, em todas as suas formas exuberantes, se configuram como égide de expressão universal, em concordância como a escritora inglesa Virgínia Woolf descreve em seu diário:
“Realmente, eu não gosto da natureza humana, a menos que
esteja toda temperada com arte. “(WOOLF, 1990).
A autora também confidencia, na obra ‘Profissões para Mulheres e Outros Artigos Feministas’, as dificuldades encontradas para uma mulher tornar-se uma escritora em uma preconceituosa sociedade vitoriana, reverberando na sua escrita seus conflitos internos:
“Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo até que uma mulher
possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma
que precise matar, uma rocha que precise enfrentar.”
(WOOLF, 2013, p. 17).
Clarice Lispector, tinha uma relação próxima e conflituosa com o medo. Em um de seus textos sobre a cidade de Brasília, ela afirma:
“O medo sempre me guiou para o que eu quero. E porque eu quero, temo.
Muitas vezes foi o medo que me tomou pela mão e me levou.
O medo me leva ao perigo. E tudo que eu amo é arriscado.”
(LISPECTOR, 1999, p. 293-295).
Inspirada em uma notícia de jornal, em que um homem bêbado apunhalou 20 vezes sua própria namorada na cama, a pintora Mexicana Frida Kahlo nomeou o título de uma de suas obras com o discurso do assassino - ‘Unos Cuantos Piquetitos’ (Umas facadinhas de nada):

Frida Kahlo - “Unos cuantos piquetitos”
(1935, óleo sobre metal, 48 x 38 cm, Museo Dolores Olmedo, Ciudad de México)
Quando questionado sobre o crime, o criminoso afirmou, sem a menor culpa, que tinha dado nela apenas “umas facadinhas de nada”. Artisticamente, Frida Kahlo traduz, através de sua arte, um relato de feminicídio, crime cometido e impulsionado por sentimentos de ódio, posse e intolerância à mulher. Em consonância com as autoras, o medo é algo presente e desafiador para mulheres que buscam inaugurar novos paradigmas e que não se submetem às convenções sociais, está na música, na arte, na literatura, no aqui e agora.
Ao tratar da mesma contingência, a filósofa francesa Simone de Beauvoir, em ‘O segundo sexo’, começa seu livro com a célebre frase:
"Não se nasce mulher, tornar-se mulher. ” (BEAUVOIR, 1949)
Nesta frase, a autora nos apresenta um sentido de movimento. O objetivo aqui não é trazer uma ideia de implicação mútua entre duas proposições, mas sim de chamar atenção para a importância do verbo reflexivo “tornar-se”, que supõe uma transformação, promove uma mudança e faz com que algo ou alguém deixe um estado e passe a outro.
Tornar-se a si mesma levou muitas mulheres à violência, estupro, feminicídio (morte física), o que deixou resquícios de temores secretos da alma - medo de abandono, desrespeito, subjugação (morte simbólica). Tornar-se mulher carrega consigo uma herança de repressões e defesas psíquicas muito potentes.
Logo, não se pode considerar mera casualidade o fato da incidência de psicopatologias, como o transtorno do pânico, transtorno de ansiedade generalizada ou transtorno de estresse pós-traumático, afetarem duas vezes mais mulheres do que homens ao longo da vida.
O medo foi consagrado na psique feminina através de repetidas experiências de dor, repressão e sofrimento, tornando-se uma herança ancestral, cuja expressão simbólica se mantém presente e potencializada no inconsciente coletivo. A cultura do medo retrata a depreciação do feminino nas sociedades patriarcais e revela a sociedade atual: estéril, dissociada do sentimento, da criatividade e do instinto, bem como excessivamente racional.

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Referências:
LISPECTOR, C. Nos primeiros começos de Brasília. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: 1999.
KINRYS, G.; WYGANT, L. E. Transtornos de ansiedade em mulheres: gênero influência o tratamento? Rev. Bras. Psiquiatr. v. 27, 2005.
WOOLF, V. Profissões para mulheres. In: WOOLF, V. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2013 [1931].
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980
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