Quíron é uma figura da mitologia grega representada pelo centauro; um ser mitológico metade humano e metade animal. Essa dicotomia pode representar o conflito da existência humana - o corpo e alma, consciente e inconsciente, masculino e feminino, bem e mal (...). O centauro, portanto, revela na sua imagem a síntese de frações diferentes. Transitando por dois mundos, o instintivo e o racional, ele torna-se um mediador, músico e um grande mestre, pois mergulhava com afinco na diversidade do conhecimento, sobretudo na cura medicinal.
Filho de Saturno e Filírea por uma infidelidade, nasceu híbrido, um semideus e por isso imortal. Rejeitado pela mãe, por ser metade humano e metade animal, viveu em uma caverna, no monte Pélion, Grécia, local que abrigava diversos heróis da mitologia, onde ele transmitia seus conhecimentos, sendo considerado um grande sábio. Na história do mito, Quíron é atingido por uma flecha envenenada de forma acidental por Hercules, seu amigo, adquirindo uma ferida incurável que o destina a viver suportando uma dor infinita. Assim, ele inicia sua peregrinação na busca pela cura de sua enfermidade. Nesse hiato, quanto mais ele desbrava o mundo, mais adquire conhecimento e soluções para as doenças da humanidade. Quíron, que não pode morrer - posto que é imortal - tampouco pode curar sua própria ferida, tornando-se então o curador – ferido.
A partir da sua condição dolorosa, Quíron desenvolve uma enorme habilidade de se sensibilizar pela dor do outro. Em uma das versões do mito, ele só consegue libertar-se da condição quando troca de destino com Prometeu, que foi acorrentado por Zeus em uma montanha, como punição por enganá-lo ao roubar o seu fogo, entregando aos homens. Todos os dias uma águia comia o fígado do Titã, fazendo-o sentir uma dor imensurável. À noite o órgão se regenerava, reiniciando a tortura no dia seguinte. Prometeu só poderia ser libertado caso um imortal concordasse em ficar no seu lugar, renunciando a própria imortalidade. Quíron, para livrar-se da sua dor eterna, assume o lugar de Prometeu na montanha e, após nove dias de tortura, finalmente consegue morrer. Portanto, somente através da morte Quíron se liberta da sua dor.
Associado ao arquétipo do curador, podemos perceber essas mesmas qualidades no orixá Obaluaê, divindade da mitologia africana. A característica do arquétipo revela que esta imagem emerge do inconsciente coletivo como moldura de um tema da humanidade. Embora esses exemplos de divindades sejam originários de diferentes cosmovisões, enquanto essência, eles demonstram a mesma gênese: a dor da existência humana. Assim como Quíron, Obaluaê possui feridas incuráveis pelo corpo que são escondidas por palhas. Considerado um grande curandeiro, desbrava o mundo em busca de sua própria cura, guarda a sabedoria das plantas medicinais e as usa para a cura das pessoas. Entretanto, na mitologia Africana, ao invés da morte como destino, Obaluaê tem suas chagas transformadas em pipoca por Iansã, quando em uma dança enxerga a magnitude de sua beleza ao olhar para além de suas feridas.
As qualidades arquetípicas dessas duas figuras mitológicas demonstram que as feridas incuráveis fazem parte da existência. Algumas delas ocultamos, sentimos vergonha, repulsa e reprimimos no nosso inconsciente, assim como Obaluaê as oculta com suas palhas. Mas é na busca pela cura, aceitação e compreensão das nossas enfermidades que aprendemos a curar.
As narrativas mitológicas nos concedem experiências significativas e profundas da essência humana. Para ser curador, é preciso ser ferido. É necessário usar seu conhecimento e habilidades a serviço da cura, do afeto e do cuidado. Curar o outro torna suportável a dor incurável que nos habita. Esse mitologema é um símbolo muito representativo para a profissão de terapeuta. Só podemos oferecer ao outro o que podemos encontrar em nós mesmos; para tornar-se um curador ferido é fundamental entrar em contato com nossas feridas inconscientes e, sobretudo, aprender a conviver com a dor da sua existência e fazer bom uso desse aprendizado. Quanto mais consciente de nossas feridas e de nossas dores nos tornarmos, mais sábio curadores seremos.
No xamanismo, para tornar-se curandeiro é necessário que ao longo da sua vida, desde a infância, o eleito tenha vivenciado experiências e possua características que o diferencia dos demais membros, como perdas, lutos ou experiências de perigo físico ou psíquico. Portanto, todo terapeuta e profissional que se dedica aos cuidados do outro torna-se um curador ferido quando nele existe a disposição de aproveitar suas dores com consciência do que dói em si. Quíron, portanto representa o nosso curador interno que vivencia a dimensão real da dor daqueles que buscam com esperança a própria cura. Ele nos ensina que nossas dores são nossos maiores mestres e que “só aquilo que somos realmente tem o poder de nos curar" (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 258)