Imagina que enquanto você assiste uma aula online, começa a pensar num bolo de chocolate que está na sua geladeira te esperando assim que você liberar.
À medida que a aula passa, você vai construindo esse desejo, junto da ideia de satisfação e preenchimento que ele pode te proporcionar.
Ao fim da aula, quando vai buscá-lo, não o encontra. Obstinado, pois já não consegue pensar em outra coisa além do bolo de chocolate, procura a padaria mais próxima e ali finalmente mata a vontade.
Quanto tempo dura a sensação de satisfação desse desejo? Dez segundos, um minuto? Em seguida, talvez você deseje uma garrafa de água bem gelada, para saciar a sede que o doce te causou?
Nas minhas palavras, foi essa breve história que meu mestre de Yoga, Marcos Rojo, contou ao fim de uma aula recente, e que carreguei comigo em reflexões, trocas e sessões de terapia.
Somos escravos dos nossos desejos, acrescentou.
Você pode substituir o bolo de chocolate, por sapatos, roupas, viagens, carro, pelo novo iPhone plus, X, R, Pro...
Escravos porque perceba, enquanto existe demanda não atendida, não existe paz. E porque logo após matar um desejo, a satisfação instantânea é tamanha, que automaticamente o cérebro já busca uma nova situação a fim de poder viver a sensação de gozo e prazer novamente.
"Os desejos são moldados por uma sociedade e descritos em termos de objetos que satisfarão necessidades. Quando apoiados pelo poder de compra, os desejos tornam-se demandas.”
-Kotler e Armstrong
No Budismo, Nirvana significa um estado de paz, desapego, próximo da sabedoria e distante do material. E portanto paz seria um permanente estado sem desejos, sem sofrimento.
- Mas terapeuta, que graça tem uma vida sem desejos? Deveria eu reduzir os meus desejos? - perguntei.
- Não diria reduzir, mas relativizar - respondeu.
De imediato, a ideia de relativizar não ficou tão clara. Após alguns dias, leituras e reflexões, venho procurando entender:
1. Meus desejos são realmente meus?
Não é novidade pra ninguém que o objetivo do marketing é criar desejos. Através da internet e das redes sociais, esse bombardeio se tornou ainda mais intenso. A lista é interminável de onde ir, o que vestir, o que usar, o que comer e até como ser. A tarefa (nada simples) está em sair do piloto automático, analisar o desejo, e colocá-lo de encontro com quem sou e o que busco. Haja terapia.
"Make sure the fortune that you seek is the fortune that you need"
(Tenha certeza que a fortuna que você procura, é a fortuna que você precisa)
- Ben Harper
2. Sou capaz de desfrutar, curtir as minhas conquistas?
Quantas vezes acabamos de conquistar algo, comprar um novo carro, mudar de casa, emprego… e já estamos pensando no próximo? Talvez não sejam os poucos minutos que separam o bolo de chocolate da água gelada… mas o quanto estamos presos num "circuito de gozo", viciados no ápice da sensação imediata pós-conquista, sem dar espaço para apreciar o que vem depois?
3. E se o que vem depois é o vazio, consigo lidar?
Essa necessidade da mente em nos ocupar com desejos mil, vem da incapacidade da psique em lidar com o vazio. Talvez isso que os budistas chamam de Nirvana - um instante sem desejos, uma sensação de morte da matéria.
Quando sentimos esse vazio, buscamos imediatamente coisas, pessoas, experiências que já sabemos que podem nos salvar. Compras, companhias, esportes, trabalho, viagens, álcool, sexo, drogas… infinitas possibilidades que momentaneamente são realmente capazes de anestesiar e preencher o silêncio perturbador.
E é completamente possível viver uma vida assim! Inclusive, alguns desses "tapadores de buraco" nem são tão caros e/ou destrutivos, alguns são até socialmente (muito) bem aceitos.
Para me auxiliar na conclusão, recorro a um conceito chamado Santosha, uma das condutas éticas mais importantes do Yoga e dita condição necessária para a iluminação. Santosha é traduzido ao português como "Contentamento", o que pode despertar certo preconceito semântico, se associado com a ideia de contentar-se, limitar-se, acomodar-se. Procure então relacionar à palavra contente, alegre.
"Contentamento é serenidade, mas não complacência. É conforto, mas não submissão;
reconciliação, não apatia; gratidão, não indiferença. O contentamento é uma decisão
mental, uma escolha moral, uma observância praticada."
- Amanda Ganesha
Santosha propõe desconectar a sensação de felicidade e satisfação de qualquer apego, objeto material. A proposta de relativizar desejos está não só em viver uma vida com menos sofrimento, mas com mais sentido e menos sensação de vazio existencial, ou como diria Clarice Pinkola (em Mulheres que correm com os lobos) fome de alma, onde entenda-se que o vazio material nada tem a ver com o vazio de sentido, propósito, existência.
"Do mesmo modo que para se preservar dos espinhos basta calçar sapatos, sem que
seja necessário atapetar todo o solo com couro, assim é pelo contentamento que se atinge
a felicidade, e não pensando: “serei feliz quando obtiver aquilo que desejo”,
pois os desejos não têm fim."
- Tara Michael (Vajra)